26 de nov. de 2025

Café com a deusa mãe

Por Allyne Fiorentino 

Quando eu era criança, adorava folhear os livros escolares ainda nas férias. Antes de termos de usá-los da “forma correta”, eu burlava as regras, pulava as páginas que deveriam ser lidas linearmente, capítulo a capítulo, para ter a enorme satisfação de prescrutar todo o conteúdo que eu aprenderia naquele ano. Antes de inventarem a expressão “sala de aula invertida”, existiram muitos nerds fazendo esse tipo de nerdice para aplainar o terreno para quem, um dia, lá na frente, daria um nome para isso. Mas o que eu mais gostava de ver eram as imagens dos livros. Naquela época em que não existia internet e as imagens das coisas deveriam ser impressas para que pudéssemos conhecê-las, era um verdadeiro deleite admirar as imagens dos livros de biologia, de artes, de geografia, de literatura. 

Ali, sem precisar de aula, já se aprendia muito sobre o mundo, apenas lendo as imagens e as legendas. Nunca disfarcei minha sede de conhecimento, mesmo que isso soasse como soberba, mas a parte mais importante, talvez, do orgulho do conhecimento é saber lidar com o passado. E, não, eu não estou falando de aprender com os erros do passado, tampouco sobre aquilo que deveríamos saber sobre fatos históricos... Não é nada disso! O passado te ensina que você não é especial. 

Essaé uma verdade que você não pode beber com Deus Pai, deve beber com serenidade na xícara com cicuta e talvez chamar de Café Com Pai Sócrates. O gosto é gourmet amargo-mortal, mas os melhores remédios têm gosto ruim, já dizia minha avó, já dizia a avó dela e a avó da avó... Tá vendo? É um verdadeiro esquema de pirâmide de conhecimento, que provavelmente remontaria às verdadeiras pirâmides, enquanto coisa material, pedra sobre pedra, gente que vivia e produzia conhecimento novo (?), inspirando-se sabe-se lá em que coisas anteriores. Construíram pirâmides de pedras para que nós construíssemos pirâmides metafóricas para charlatões contemporâneos. Um viva aos trabalhadores das pirâmides! 

Quando você se importa com algo aquilo se torna prioridade pra você e torna-se o centro da sua atenção!” (PAI, Café com Deus). É verdade, nisso o Deus Pai do Café está corretíssimo, mas deus pai da editora colocou essa frase bobinha, rasa, bestinha, que qualquer ser humano médio poderia dizer sem esforço, sem nem pensar muito, em um livro, fez um marketing e agora ela vale algum dinheiro. Mais do que isso, ela torna o Deus Pai do Café “especial”, porque, ora bolas, “renovar” tornou-se essencial. E nada mais velho e antigo do que se aproveitar dos desmemoriados! Já dizia a sabedoria popular que o orifício dos desmemoriados é igual aos dos bêbados, não tem dono (POPULAR, Cultura). Tomando da caneca da frivolidade, li que “dentro das definições da palavra ‘renovar’, encontramos: tornar novo, melhorar, substituir por coisa melhor (PAI, Café com Deus)”. Quanta soberba, senhor Deus Pai do Café em pensar que poderíamos ser melhores que nossos antepassados. Na hora que o avião está caindo, são os clássicos que você busca e pelos clássicos que você grita pedindo salvação. Ninguém é ateu de clássico nessa hora. 

Dizer de forma bem pior e sem talento aquilo que todo mundo já sabe ou que já foi dito anteriormente por talentosas figuras... isso é o que chamam de inovação! Mas eu chamo de “especialização”, tornar especial algo que não é. Mas, como eu já disse, e outros tantos disseram antes de mim e eu, também, só estou repetindo, você não é especial. E não adianta chorar: crise existencial também é mais velho do que andar pra frente. 

O negócio é saber com quem tomar seu café. Isso remonta à velha sabedoria mineira, um cafezim não se nega a ninguém, mas se o convidado se senta na sua mesa e diz que acabou de inventar um negócio genial chamado café, você desconfia. Café Com Carisma e Desconfiança Mineira, sempre uma boa pedida. 

Outro dia eu vi um vídeo de uma mulher que estava abismada com um bicho estranho na praia, fez esse vídeo para mostrar pro mundo que aquele “alien” estava ali naquele momento e ela precisava de ajuda para entender o que era aquilo, porque afinal de contas não dá para filmar e procurar no Google ao mesmo tempo, no mesmo celular, não é mesmo? 

Ao contrário do Deus Pai do Café, eu não usarei de forma escusa o seu orifício de desmemoriado para dizer que uma das imagens daquele livro de quinta série mostrava uma Caravela do Mar, bicho fantástico, lindo, parece mesmo um alien. Nem vou dizer que todo mundo já teve um ou mais livros didáticos em que havia uma foto de uma Caravela do Mar e a legenda explicando o que era aquilo. Não, o assunto memória e o motivo de as pessoas a perderem é deveras complicado para apenas um café. Mas, também, porque eu sou uma mineira, pessoa poética por natureza, e se fosse no meu Café, eu diria para ela que a palavra renovar vem do Latim (RE-, “outra vez”, + NOVARE, “tornar novo”), tornar novo de novo, talvez ela ali, diante daquele bicho meio “alien”, teve o “pasmo essencial que tem uma criança”, como diria Pessoa, ou a “saudade da pureza”, como diria Manoel de Barros, e eu sigo romantizando a ignorância de um povo que tem mais acesso ao conhecimento do que qualquer geração já teve, mas, pelo menos, eu não estou me aproveitando de ninguém. 

* Crônica publicada originalmente no Crônica do Dia. 

 

Allyne Fiorentino é natural de Minas Gerais, mas reside em São Paulo, capital. É profissional das Letras e da Educação, mestra em Estudos Literários na linha de Teorias e Crítica da Poesia. Atua, atualmente, em Tecnologia da Educação. Apaixonada por Literatura Feminina, Simbolismo, Filosofia e excentricidades. Low profile do mundo literário, escreve pouco, mas, acredite, incisivamente. Está também em Crônica do Dia. Instagram: @fiorentinoallyne.

25 de nov. de 2025

Marinhas de Vinna

Por Milton Rezende

Tábuas e pincéis compondo perspectivas de azuis caminhos nas águas de Mina. Walls and bridges interrompendo os verdes dos juncos, ao redor de paisagens recuperadas. Cavalos a toda brida nos levam a estreitos caminhos cavados nas encostas dos morros: paisagens nórdicas, mineiras e paulistas equivalem-se no absoluto do mundo, afinal diluído em contornos de magia, de luz e sombras em meio aos destroços do navio, como se a vida fosse isso – árvores de frio, anjos com substância de crianças, orquídeas de vidro, estampas de pátinas brilhando à sombra dos mistérios e pássaros de lata despertando Maras. Fileiras de peixes nas trilhas do universo e os sinais e os signos que saltam ao chamamento das águas. Estenografia de códigos rompendo o silêncio e o diário de Jonathan esquecido nos caixotes do castelo de Mairiporã. Nada afinal daquilo que fosse submerso, subterrâneo: tudo dista. A esperança atravessou a quilha e não encontrou nada além da terra nativa pulverizada de cinzas e os fantasmas. E parecia simples seguir o diário de bordo. O capitão já estava morto e amarrado ao leme. A meia linha inteira que nunca se concretiza. O camarote, o beliche e aquela escotilha que nunca se fecha de noite, as vagas do mar bem dentro, o meu esforço supremo de escrever e o ateliê de sensibilidades de Vinna.

Do livro Uma Escada que Deságua no Silêncio.

 

Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália (MG), em 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG). Funcionário público aposentado, morou em Campinas (SP), Ervália (MG) e retornou a Campinas (SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quinze livros publicados. Tem um site e um blog. 

Fortuna crítica: “Tempo de Poesia: Intertextualidade, heteronímia e inventário poético em Milton Rezende”, de Maria José Rezende Campos (Penalux, 2015).

24 de nov. de 2025

O fim da Coca-Cola: adeus à geração mais rica da história

Por Gustavo Coelho 

Vivemos em uma era de luto cultural disfarçado de progresso. A cada notícia da partida de um grande ícone, um sentimento agridoce nos invade, mas a frequência dessas perdas recentes acaba por parecer como um toque de finados para a melhor era. Nos últimos tempos, o mundo se despediu de figuras que moldaram nossa juventude e o panorama da cultura pop global. A notícia da morte de Akira Toriyama, o mestre visionário por trás de Dragon Ball, deixou órfã uma legião de fãs que cresceram com suas histórias e personagens vibrantes. No cenário musical, a partida de lendas como Tina Turner, a rainha do rock'n' roll, com sua energia inigualável, e, mais recentemente, e o príncipe das trevas Ozzy Osbourne, cujo impacto no heavy metal transcendeu gerações, nos lembram da fragilidade de nossos ídolos. 

Mais além podemos constatar verdadeiras perdas quando lembramos de ícones como Hulk Hogan, o herói anabolizado que nos ensinou a acreditar no impossível dentro dos ringues, ou Matthew Perry, cujo personagem icônico em Friends marcou uma geração com seu humor ácido e vulnerabilidade, também reverberou profundamente. E, aqui no Brasil, a ausência de um gigante como Pelé, embora do mundo do esporte, sua influência cultural era inegável, unindo o planeta sob a magia do futebol. 

A cada um desses nomes que se tornam memória recente, a constatação amarga do que nos tornamos fica mais nítida. Somos os órfãos da "Geração Coca-Cola", a última grande safra global de artistas e figuras que moldaram o mundo com originalidade, crítica e uma riqueza cultural que hoje parece rarear. Assistimos, impotentes, ao seu crepúsculo, enquanto somos engolidos por um presente cada vez mais superficial. 

A geração que Renato Russo batizou com ironia era, paradoxalmente, a mais rica em sua essência. O rock que ecoava dos aparelhos de som não era apenas barulho; era um manifesto. As letras da Legião Urbana, dos Titãs, de Cazuza, eram crônicas de seu tempo, carregadas de filosofia, angústia existencial e uma contundente crítica social. A música tinha alma, contava uma história e nos convidava a pensar. No cinema, atores como Robert De Niro, Al Pacino ou, no nosso quintal, Fernanda Montenegro, não apenas atuavam: eles se transfiguravam, entregando verdadeiras performances que se tornaram parte da nossa memória afetiva. Havia um compromisso com a arte, uma busca pela excelência que hoje foi substituída pela busca de engajamento. 

Em contrapartida, o que temos agora? Vivemos sob a tirania da superficialidade. A figura do artista deu lugar à do influenciador digital, um produto de marketing pessoal cujo valor é medido em cliques e "publis". Nesse ecossistema, a verdade é irrelevante; o que importa é a aparência de autenticidade, fabricada para vender um estilo de vida. A opinião de quem não possui qualquer lastro de conhecimento é, por muitas vezes, considerada verossímil simplesmente por ter milhões de seguidores. É a vitória da popularidade sobre a sabedoria. 

Essa mudança de paradigma devastou nossa cultura. A música que hoje domina as paradas raramente ousa ser poética. Abandonamos a complexidade lírica para abraçar o simplismo de refrãos repetitivos e letras que, em sua maioria, fazem apologia a um estilo de vida hedonista e marginalizado, sem qualquer camada de reflexão. A poesia foi trocada pela batida, a mensagem pela baixaria ou alguma espécie de marketing contra uma facção. Da mesma forma, nossas telas estão repletas de atuações anêmicas, onde o carisma substitui a técnica e a presença nas redes sociais vale mais que a profundidade dramática. O pouco é celebrado como se fosse muito; uma lágrima forçada ou uma frase de efeito já são suficientes para coroar uma "grande atuação". 

O fim da "Geração Coca-Cola" não é apenas o fim de um grupo de pessoas, mas o encerramento de um movimento cultural que valorizava o conhecimento, a arte como forma de expressão e a inteligência como virtude. Hoje, o ganho pessoal, ou a imposição cultural e a fama instantânea são os novos deuses, e o legado que estamos construindo para o futuro parece ser um deserto de conteúdo, pontuado por oásis de memes e vídeos curtos. 

Fica a saudade de um tempo em que a música nos fazia questionar o mundo e o cinema nos fazia sentir de verdade. Adeus, Geração Coca-Cola. Sentiremos falta não apenas de seus gigantes, mas da riqueza que, junto com eles, parece nos ter deixado para sempre.


Gustavo Coelho, natural do Rio de Janeiro (RJ), reside em Uberlândia/MG. Formado em Comunicação Social e especialista em Marketing, assim como todo bom nerd, é um apaixonado pela cultura Geek. Empresário com 45 anos, tem como hobby a contínua busca do anime perfeito. Casado, pai de uma linda filhota, entra neste mundo mágico da Literatura buscando expandir, cada vez mais, sua criatividade e imaginação.

22 de nov. de 2025

amizade, de whisner fraga


Whisner Fraga é mineiro de Ituiutaba. Autor dos livros usufruto de demônios (Ofícios Terrestres, contos, 2022, finalista do Prêmio Jabuti), usufruto de ruínas (Ofícios Terrestres, contos, 2023), as fomes inaugurais (Sinete, contos, 2024), entre outros. Teve contos traduzidos para o inglês, árabe e alemão. É responsável pelo canal “Acontece nos livros”, no YouTube, em que fala sobre obras da literatura brasileira.

21 de nov. de 2025

Instantâneos poéticos nos minicontos de José Eduardo Degrazia

Por Krishnamurti Góes dos Anjos 

Antes da resenha do costume sobre o último livro publicado do escritor José Eduardo Degrazia, cumpre colocar alguns ‘pingos nos is’ no que diz respeito à história do miniconto brasileiro. Pingos nos is” significando deixar algumas coisas mais esclarecidas, organizar aspectos confusos, discernir melhor entre uma coisa e outra e lhe conferir um reconhecimento inegável. 

Na questão de genealogia do miniconto (também conhecido como microconto, minificção ou conto em miniatura), há quem veja seus primórdios no texto de Machado de Assis “Um apólogo”, do livro Várias histórias (1886) ou em Raul Pompéia com suas Canções sem metro, publicado em 1900, cinco anos após sua morte. Atribuir conotações de gênero novo para esses textos constitui, em verdade, um exagero. Não passam de circunstâncias criativas e ocasionais de seus autores, embora não duvidemos das suas qualidades intrínsecas. 

Em verdade, o movimento que parece marcar a ficcionalidade diminuta contemporânea tem de fato suas raízes mais profundas no Modernismo de 1922. A partir desse evento, que trouxe a fragmentação da linguagem, o instantâneo poético, a introjeção do ficcional no poético e do humor irônico na prosa, dentre outras características, é que foi se firmando os contornos do que hoje entendemos como minificção. É verdade que Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, entre outros, mais tarde escreveram trabalhos no gênero, entretanto, quando os conceberam, ainda não havia um sentido muito claro do gênero. Pode-se afirmar, inclusive, que tais autores, ao se valerem de um cruzamento irrefreável entre prosa e poesia, poema e ficção, buscavam mais uma renovação de estofo verbal. 

Já nas décadas de 1960 e 1970 surgem autores que efetivamente deram início de modo mais orgânico à minificção no país. Wendell Guiducci, em Origens e consolidação do miniconto no Brasil, registra que a palavra miniconto aparece pela primeira vez numa plaquete do Grupo mineiro de Guaxupé (Francisca Vilas Boas, Elias José, Sebastião Rezende e Marco António de Oliveira), 20 mini-nontos, de 1969. Ainda faltam estudos sobre esses textos, mas parece indiscutível que é aqui que se deve situar o início mais efetivo da prática, não em Ah, é? (1994), de Dalton Trevisan (falecido aos 99 anos de idade). Antes de Trevisan, Elias José já publicava minicontos em periódicos desde 1968. À época, essa prática literária era nova, surpreendente e recebida com suspeita. Quando do Ah, é?, do Dalton Trevisan, de 1994, já existia ambiente mais propício à nova expressão literária. 

O escritor José Eduardo Degrazia está entre os autores precursores do gênero no Brasil. Entre os anos de 1996 e 2000, publicou três livros no gênero: O atleta recordista (1996), A orelha do bugre (1998) e A terra sem males (2000). Saliente-se que, desde pelo menos 1974, Degrazia vinha publicando minicontos no jornal Correio do Povo do Rio Grande do Sul. Vale também o registro de que este autor, ao lado de Dalton Trevisan e de Marina Colasanti, entre outros, pertencem à geração ou grupo de autores que levará à explosão desta prática no século XXI. Citar nomes nesse árduo caminho que é a literatura é sempre difícil e geralmente incorremos em faltas graves. A minha geração (anos 1990), por exemplo, assistiu a uma grande variedade de autores de minificção, como João Gilberto Noll, Rubem Fonseca, Moacyr Scliar, Luiz Arraes, Carlos Herculano, Fernando Bonassi, Luiz Ruffato e, mais recentemente e com destaque, Whisner Fraga, Mário Sérgio Baggio, Alê Motta e Fernanda Caleffi Barbetta. 

Temos então o registro da contribuição de José Eduardo Degrazia para o miniconto, que deve ser, portanto, reconhecida e valorizada. Muito bem. Eis que encontramos o autor nesse novo O homem que escrevia nobar (contos, 2024, Editora Sulina). Como sabemos, na ficção de estrutura curta, a ideia perseguida pelos autores é que num mínimo de palavras seja apresentado todo um contexto e uma ação em torno do pouco que é revelado e, mais importante que mostrar, sugerir, deixando ao leitor a tarefa de "preencher" as elipses narrativas e entender a história por trás da história escrita. 

Nesse mister, Degrazia é, sem favor, um mestre. Consegue, nos 56 minicontos reunidos, convergir duas das principais vertentes do gênero. A do conto miniaturizado dentro do poema de feição ficcional. Melhor dizendo, a gradativa redução da configuração física dos textos se ajusta, se amolda, perfeitamente, em subjetividades nas quais o andamento lírico do texto aproxima o miniconto pós-moderno do poema. Tudo dentro da construção de imagens e sínteses. Sobre a obra do autor, já o crítico literário galego Xosé M. Eyré, afirmou “o miniconto é uma narrativa de extrema contenção, mas que nunca perde a necessidade de contar uma história, tendo personagem, ambientação e tempo”. 

Os trabalhos de Degrazia, no gênero, abordam principalmente as relações do cotidiano, a solidão das grandes cidades, as crises pessoais e sociais, sempre dando uma aparência de simplicidade que acaba encontrando a epifania através do insólito, do que rompe subitamente com a ordem. E tudo isto, convenhamos, não é pouco, ainda mais em desfechos em que o imprevisível toma corpo. O miniconto deve ser sempre imprevisível, essa é a sua principal virtude que ocorre a abarcar as narrativas sob tantos e tão variados temas da vida, vistos sob as mais diversas óticas: metaficção, ironia, paródia, humor, intenção crítica. Daí o necessário impacto sobre o leitor, fustigado a reler os textos. 

Para quem não sabe, vale ainda um acréscimo. O autor há mais de 50 anos vem trilhando uma discreta carreira literária que já frutificou em 36 livros de contos, minicontos, poesia, romance e infantojuvenis, além de dezenas de crônicas e artigos em jornais. E não é só. Traduziu livros de Pablo Neruda, poetas latino-americanos e italianos e já foi premiado em poesia, conto, teatro e tradução. 

Temos neste O homem que escrevia no bar o aflorar nos textos de um humanismo que nos deixa entrever os caminhos que podemos percorrer para alcançar uma humanidade mais justa. Este o autoconhecimento que a literatura propicia, porque o discurso literário nos possibilita, também, melhor conhecer o próximo dentro das diferenças de que todos nós somos portadores. Como não se encantar com textos como “O estudante e a costureirinha”, “A moda” ou “A calcinha vermelha”, que revelam as possibilidades do amor, seus desvãos, quedas e delícias? Como não refletir demoradamente sobre a nossa consciência social ao lermos textos como “Coisas de futebol”, “Os supremos” ou “A invasão dos bárbaros”? Como não pensar seriamente sobre o trabalho do escritor e as dificuldades que enfrenta num país como o Brasil, ao ler “Na feira do livro” ou “O escritor mitômono”? Como não se emocionar, e profundamente, com narrativas como “O passarinho”, “Catatonia” ou “Velhos”? 

O conto-título, e de maior extensão na obra, é um verdadeiro achado ficcional. Narra uma história única, porém fragmentada em minicontos entrelaçados ao todo da narrativa. Cada unidade é a personalidade que se manifesta, e o todo é a ambiência, o tempo que passa. Márcia Ivana Lima e Silva, que assina o prefácio do livro, afirma com muito acerto que a ficção do autor é tecida em “instantâneos que elevam nosso espírito aos grandes temas, igualando-se à filosofia.” E mais adiante: “mais do que apresentar mundos diversos, o livro de Degrazia nos indica caminhos de representação de si e de validação do outro, num jogo de espelhamento que reflete, às vezes, o azul dos céus, e outras a lama da estrada”.


“O homem que escrevia no bar”
Contos
José Eduardo Degrazia
Editora Sulina – Porto Alegre / RS
2024
96p. 
ISBN 978-65-5759-175-8 

Links para compra e pronto envio: https://editorasulina.com.br/detalhes.php?id=884 

 

Krishnamurti Góes dos Anjos é baiano de Salvador. Escritor, pesquisador e crítico literário, é autor, entre outros, de O Crime dei Caminho Novo (romance histórico), Embriagado Intelecto e outros contos, À flor da pele (contos) e Destinos que se cruzam (romance). Possui textos publicados em revistas no Brasil, Portugal, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. O Touro do rebanho (Editora Chiado, romance histórico) obteve o primeiro lugar no Prêmio José de Alencar (UBE/RJ) em 2014. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea, colaborando em diversos jornais, revistas e sites literários.

18 de nov. de 2025

'Hum', de Samir Mesquita

"Hum é uma cidade na Croácia, murada e erguida sobre pedras. É oficialmente considerada a menor cidade do mundo. Quando o livro foi escrito, viviam ali pouco mais de vinte habitantes — entre eles, apenas uma criança.

Em HUM, de Samir Mesquita, Karlo é essa criança. Chamado de “Príncipe de Hum” pelos moradores, vive em busca do pai desaparecido na guerra. Sua mãe diz que ele se foi com os combates, e por isso Karlo deseja que a guerra volte — para que traga o pai de volta. Enquanto o menino escala muros atrás de feridas que nunca se fecham, o poeta Tomo, cego e louco, percorre as ruas dizendo verdades que só a poesia e a loucura conseguem revelar.

Sob a capa áspera, impressa sobre lixa, o livro convida o leitor a atravessar os muros dessa pequena cidade.

O projeto gráfico traz ilustrações também do autor, criadas com pedras, como se fossem pincéis."



Instagram do autor: @samir_mesquita

16 de nov. de 2025

Entre um trago e um foda-se: leia a HQ 'O Filósofo da Maconha!'

Pra lembrar que ainda temos exemplares da história em quadrinhos O filósofo da maconha. 

Prepare o cérebro, aperte o baseado e vomite toda a desgraça burguesa! 

Não esqueçam,  malucos, malucas e maluques: chegou O filósofo da maconha, um quadrinho escatológico, lisérgico e anárquico com 126 páginas de pura hecatombe psico-filosófica. 

Um roteiro alucinado de Fabio da Silva Barbosa, com os traços cravados a canivete no papel do artista visual Diego El Khouri. Prefácio do gigante mutante Ciberpajé, selado no altar profano da Editora Merda na Mão, que cospe tinta punk e goza ácido nas impressoras. 

Aqui não tem espaço pra good vibes nem pra maconheiro de condomínio! 

É filosofia fumada até o talo, dialética mijada no ralo, Nietzsche desfigurado pela larica, e Platão reduzido a farelo na ponta de um beck sujo. 

É mais que HQ: é um ataque terrorista contra a caretice, uma masturbação mental em público, um grito esganiçado que ecoa das profundezas do intestino grosso da cultura underground. 

Quem lê, nunca mais volta. Quem não lê, que se exploda! 

Só pra quem encara a bad trip, abraça a escatologia e ri da própria insignificância diante do vácuo cósmico e da fumaça espessa. 

O filósofo da maconha: 

Não é sobre maconha — é sobre a falência absoluta do sentido!

Não é sobre filosofia — é sobre a pulsão de cuspir na cara do sistema!

 

Corre, vagabundxs, antes que essa merda acabe!

Só nas melhores sarjetas e becos sujos da cena independente!

Um arroto e um peido bem alto e fedido contra a caretice!

 

email: editoramerdanamao@gmail.com ou editoramerdanamao@yahoo.com

14 de nov. de 2025

O tiro de dois calibres

 “A bala que matou o filho o matou dois meses depois” 

Por Ricardo Novais 

Presente senhor leitor, permita-me que assim o trate, com a solenidade de quem anuncia um velório. É possível que pense que a sua vida regrada o salve da lascívia do escândalo público. Mas engana-te! Talvez a dona leitora, mais asseada que o senhor leitor, imagine que a lúbrica tragédia mora longe, nas páginas da literatura ou dos boletins policiais. Engana-te igualmente! A desgraça da integridade desonrada mora logo ali, na casa de número vago, onde até as cortinas têm vergonha de se abrir. 

O pai, funcionário de carreira corporativa, homem de relógio e alarme, sempre foi um exemplo de cidadão de bem. Dizia que o pior escândalo é sempre o dos outros; o seu, não permitia nem debaixo do travesseiro. O filho, contudo, nasceu com vocação para o pecado: bonito, boêmio, confiado e, digamos, largo demais com as mulheres alheias. Tinha o dom da “talaricagem” no sangue como um possante pé-de-pano. 

Eis que um dia, entre o barulho do metrô e o cheiro de café expresso em copo americano, o rapaz cai na calçada defronte à estação. Um tiro. Só um, senhor leitor. Um tipo certeiro, higiênico, quase digno. O marido traído tinha boa mira e, como todo corno, pouca paciência. Diria que a resignação de um corno é concentrada, concentradíssima.

Morrera o filho. O pai, ao saber, não gritou. Fechou a porta, sentou-se e suspirou com dignidade. Chorou baixo, como choram os homens que têm temor da opinião pública. Limitou-se a dizer: “Meu filho era bom”. Mentia. Mas mentia com afeto. A leitora há de concordar que isso o redimia um pouco. 

No velório, as distintas senhoras do bairro rezavam e cochichavam entre um Pai-Nosso e outro: “Foi o que deu mexer com mulher casada. O marido só lavou a honra”. Desgraçadamente, as fofoqueiras tinham razão – sempre têm, essas santas de esquina. 

Algum tempo de calendário depois, o pai enlutado começou a visitar o túmulo do filho talarico todos os dias. Falava com a catacumba como quem implora por perdão. “Meu filho, a culpa é minha. Não soube te dar boas maneiras, educação...”. Comovente; não é mesmo, amiga leitora? 

O tempo, esse burocrata e psicopata, deixou passar dois meses e três dias; já as horas exatas, imperfeitas demais para acertar os ponteiros. Mas o pai, sim, acertou-se com seus ponteiros; cada dia mais anêmico, deixou de ir ao escritório, não compartilhava mais vídeos do Brasil Paralelo no grupo do WhatsApp da família e dos amigos, sequer fazia mais a barba e as lentes dos óculos foram ficando sebosas e embaçadas. 

Encontraram-no morto na poltrona de sua sala de estar. Café frio ao lado. O corpo quieto, o olhar parado em cima do celular. Na tela do aparelho, ainda aberta, via-se a foto do perfil de rede social da mulher do corno assassino. Finalmente, teve compaixão por si mesmo compreendendo o seu castigo naquele calibre do destino. 

Pai e filho não morreram de amor. Morreram de moralidade, como legítimos cidadãos de bem.


Ricardo Novais nasceu em São Paulo. Costuma dizer que só escreve porque escrever é coisa infinita, ainda que seja somente rótulo. Rótulos podem ser divertidos, superficiais, é verdade, mas bem divertidos. É autor do romance O Boêmio e dos livros de contos Trem noturno e Perfumes da pátria. Acredita que a vida e a morte são como um gol aos 45’ do segundo tempo; o último gole é sempre a saideira.

11 de nov. de 2025

Os Samambaias Choronas – Trilogia III


Por Milton Rezende

Algumas pessoas me perguntam sobre o meu processo de criação. Não sei bem o que dizer, mas digo que três fatores são essenciais: método, disciplina e solidão. Geralmente elas concordam com os dois primeiros itens e me questionam, sempre, quanto ao terceiro. Digo-lhes que este é o décimo terceiro livro que escrevo ou do qual participo e que, com exceção dos livros de poesia, que são a maioria e que é algo inexplicável, os demais livros, em prosa, seguem este protocolo.

É claro que depois de o Fausto ter entrado em minha vida e ter roubado as minhas histórias ou parte delas, alguma coisa mudou, mas a essência permanece a mesma. Eu diria que sou um escritor de feriados prolongados, quando a casa está vazia e você pode então se exercitar no método, na disciplina e na solidão que já então é intrínseca.

 No meu caso, especificamente, conta o fato de eu e minha família estarmos deslocados no espaço geográfico, bem como os meus vizinhos mais próximos, que também não são daqui. Não tenho parentes e pouquíssimos amigos na cidade onde moro. Nos feriados, cada um caça o seu rumo e o meu rumo como é distante ou inexistente, permaneço aqui entre ovelhas de sonhos que cultivo em silêncio. Não que eu quisesse, sempre, poder ir para a minha cidade natal. Até porque, presentemente, eu não gostaria de morar lá. Mas ela é sempre uma referência, um espaço a se conquistar, como aquele antigo amor que você sabe que nunca será seu e que, não obstante nunca deixa de te des/nortear a vida.

Outro dia, num show de rock que eu e minha banda imaginária fizemos em nossa cidade, alguém da platéia gritou que éramos o que de melhor havia e eu retruquei, do palco onde eu estava então, que agradecia os seus elogios superlativos, mas que na verdade eu não passava de um bêbado. E nisto consiste o meu método e a minha disciplina: nos feriados prolongados, quando todos viajam, tranco-me em casa, não sem antes me abastecer de cervejas, carnes, cachaças e filmes pornográficos. A literatura e a música precisam ser reais, mas o sexo pode ser virtual. Durante esses três ou quatro dias geralmente eu não ponho o focinho para fora da caverna. Tranco tudo e é preferível que o telefone e a campainha não toquem, como de resto não tocam mesmo, para que eu mantenha a minha disciplina solitária. Como escrever, por exemplo, um romance com a televisão ligada e com conversas e pessoas circulando pela casa? O recolhimento, mais do que o silêncio, é fundamental, assim como é fundamental o egoísmo no ato de escrever e que cada coisa esteja no seu devido lugar.

Então, entre uma cerveja e outra eu escrevo. Entre uma cachaça e outra eu escrevo. Entre um orgasmo e outro eu escrevo. Entre um alimento e outro eu escrevo. Sem ter varrido a casa, sem ter lavado a louça, sem ter tirado a poeira dos móveis, sem ter lavado a roupa suja, sem ter desentupido a pia da cozinha, sem ter passado a roupa da semana anterior, sem ter lavado os banheiros, sem ter passado pano molhado no piso, sem ter cozinhado o feijão, sem ter vivido o que minimamente se entende por vida, sem ter visto ou falado com ninguém sequer ao telefone. Preso ao abismo da tela do computador, desvinculado do mundo e alheio a tudo o que seja externo ao desespero e às lembranças e à memória de um mundo afinal inexistente.

No entanto é fundamental que se tenha pássaros cantando e vasos de flores e peixes no aquário e montanhas verdes que se estendam através da paisagem e que essas montanhas sejam circundadas de árvores. E que os ônibus passem na estrada ao longe, recortada pelo ângulo da janela e que não haja ruídos nem vozes de gente. É claro que a solidão, a despeito do que se produz ou do que se deixe de produzir, cobra o seu alto preço e a morte é um medo permanente e o sono escasso e a fome negligenciada, assim como o corpo e a alma igualmente relegados a um plano secundário e tantos outros inconvenientes, de tal modo que sorrio sempre e com alívio quando afinal ouço a chave no cadeado do portão e Rita de C. sobe pela escada da rotina afinal restabelecida. Mais uma vez fui salvo de mim mesmo.

 Do livro Texto e Ensaios.


Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália (MG), em 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG). Funcionário público aposentado, morou em Campinas (SP), Ervália (MG) e retornou a Campinas (SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quinze livros publicados. Tem um site e um blog.

10 de nov. de 2025

Vídeo-resenha de 'A mais recôndita memória dos homens' (Mohamed Mbougar Sarr), por Whisner Fraga

 

"Várias pessoas vinham me dizendo: 'Poxa, você tem que ler esse livro! O livro é fantástico, o romance é maravilhoso, eu nunca li nada igual.' Eu percebi que havia uma certa unanimidade em torno desse romance. Esperei um pouquinho a poeira baixar para conferir. Li, enfim, A mais recôndita memória dos homens, de Mohamed Mbougar Sarr. Esse livro foi ganhador do Prêmio Goncourt em 2022 e saiu aqui, pelo menos essa edição que eu li, pela Fósforo em 2023. E você? Você leu esse livro? O que achou? Você tá com vontade de ler? Vamos bater um papo a respeito desse livro?"


Whisner Fraga é mineiro de Ituiutaba. Autor dos livros usufruto de demônios (Ofícios Terrestres, contos, 2022, finalista do Prêmio Jabuti), usufruto de ruínas (Ofícios Terrestres, contos, 2023), as fomes inaugurais (Sinete, contos, 2024), entre outros. Teve contos traduzidos para o inglês, árabe e alemão. É responsável pelo canal “Acontece nos livros”, no YouTube, em que fala sobre obras da literatura brasileira. 

6 de nov. de 2025

Cem anos de ‘A luva’, a revista que calçou uma época (1925 -1932)

 

Por Krishnamurti Góes dos Anjos 

Em 15 de março do ano de 1925, começa a circular em Salvador a Revista A Luva, que possuía redação e oficinas localizadas na rua do Cabeça nº 18, centro da cidade. Idealizada por Severo José dos Anjos, esse periódico foi um marco na produção editorial baiana no período que se estendeu de 1925 a 1932, em que foram impressas suas 131 edições em periodicidade quinzenal. 

A Luva cativaria primeiramente um público consumidor interessado nas seções diversificadas e atraído pelas capas coloridas, pelas fotografias e pelas técnicas de ilustração, público esse ainda habituado a formas em preto e branco. Com o tempo, os leitores acompanhariam com interesse as crescentes altercações sobre a literatura modernista e a arte em geral. 

O periódico caracteriza-se, em sua fase inicial, como um ponto de transição, e mesmo que não assumisse explicitamente a aderência ao Modernismo, já deixava entrever, em sua produção, indícios de liberdade estilística e temática condizentes com o ideário moderno. Desta forma, ainda que se firmasse como uma “revista de variedades”, publicava também textos literários, ensaios, resenhas e críticas de arte, de grupos modernistas distintos, fornecendo-nos material suficiente para a análise das concepções estéticas e ideológicas daquele momento. 

Neste momento em que se completa cem anos da aparição de A Luva, cumpre ainda registrar dois outros aspectos que podemos abstrair do pensamento daqueles que nos precederam e que muito têm a nos dizer em nossos dias de 2025. Primeiro: qual a percepção na década de 20 do século passado sobre o estado do mundo e dos homens? A esse respeito levantamos uma pontinha do véu no texto “A Dúvida atual” (Ano I, nº 8, 30-06-1925), assinado por Carlos Chiacchio, e que transcrevemos na íntegra com a ortografia atualizada. 

“Atravessamos um nevoeiro. A alma contemporânea vive sob o domínio das apreensões. De cada lado um pesadume assalta-a. O assédio dos dissabores conturba-a a cada instante. É um hesitar sem fim. É um vacilar sem termo. Vivemos, pensamos, sofremos, numa contínua oscilação de pêndulo. É um labirinto que atravessamos. É a dúvida... Mas não é a dúvida filosófica, a criadora de sistemas. Não é a dúvida científica, a construtora de teorias. Não é a dúvida religiosa, agitadora de mistérios. Não é a dúvida interior, mãe dos despautérios. É a dúvida ignorante, manancial de erros. É a dúvida econômica, manipuladora da fraude. Os homens não se compreendem à luz franca do sol, mas se despedaçam no seio abscôndito da treva. O amor causa vergonha. O ódio é que imprime caráter. Se tu estendes com afeto o braço, para bem dizer. Logo te cortarão no pulso a mão da justiça. Porém, se levantas o pé com açoites epiléticos da fúria, então chovem flores na arena. Hinos aos combatentes do circo. Pedras aos louvaminheiros da paz. Mais vale o bloco imundo do lodo que se atira contra o adversário, do que o punhado de bençãos que se lança ao amigo. A declamação párvoa em vez do argumento sério. O espasmo rábico em lugar do princípio salutar. E se o espírito observador não degenera em certos temperamentos ao extremo nirvânico da resignação é que o desespero ainda lhe palpita no bojo num estado fervilhante da dúvida, que é sua melhor atitude diante das coisas e dos homens... Por quê? Porque tudo está sendo mais fácil à violência da força do que à naturalidade do direito. E revoltar-se é a lógica dos vencidos. Os nervos atingem essa tensão de quase loucura: a loucura da dúvida, de que nos falam os mestres da psicologia mórbida. Anda Hamlet as testilhas [disputas] com Pangloss. Mas não será possível um mundo melhor? Uma vida mais bela? Uma época mais feliz? Quem sabe, quem o poderá saber, sob esta pressão sombria da dúvida, a dúvida soturna que pesa como o tédio sobre a alma da gente? “Caminha” diz a esperança. Mas como é hesitante a ilusão duma esperança...” 

Um segundo aspecto: de que forma os homens daquela época viam as promessas de um futuro luminoso para a humanidade, embalados que estavam por perspectivas do progresso científico e tecnológico sem freios? A esse respeito leiamos o editorial da revista publicado no dia 15 de novembro de 1927.

(Clique na imagem para ampliá-la)

E hoje, o que nos resta é perguntarmo-nos perplexos em que ponto nos perdemos? Como afinal a realidade atual ainda conseguiu ser pior do que a imaginada há cem anos? Se por um lado, vivenciamos um desenvolvimento tecnológico sem precedentes na história humana, por outro, o sentido e a prática humanista definhou a níveis alarmantes.


Krishnamurti Góes dos Anjos é baiano de Salvador. Escritor, pesquisador e crítico literário, é autor, entre outros, de O Crime dei Caminho Novo (romance histórico), Embriagado Intelecto e outros contos, À flor da pele (contos) e Destinos que se cruzam (romance). Possui textos publicados em revistas no Brasil, Portugal, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. O Touro do rebanho (Editora Chiado, romance histórico) obteve o primeiro lugar no Prêmio José de Alencar (UBE/RJ) em 2014. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea, colaborando em diversos jornais, revistas e sites literários.

4 de nov. de 2025

'Conversas', de Jander Minesso: crônicas dialogadas

 Por Allyne Fiorentino 

Conversas, livro recém-publicado em São Paulo pela Editora Sinete, é um compilado de 57 crônicas de Jander Minesso, autor e roteirista audiovisual.

  

Para quem gosta do gênero crônica, vai achar curioso o fato de que todas elas estão em forma de diálogo (daí o título), o que torna a leitura bem dinâmica e rápida, sendo possível percorrer 177 páginas de escrita em menos tempo do que se supunha e com bastante fluidez.  

 

Dizem (eu sei que vocês gostam de fofocas literárias!) que o autor certa vez recebeu uma crítica, que afirmava que ele não escrevia diálogos muito bem. Eu não o sei o signo do autor, mas ele parece ser daqueles que remoeria essa crítica durante muitos anos, treinaria noite e dia, faria cursos, viraria madrugadas em claro com o único objetivo de superar a “fraqueza” e depois lançar um livro de crônicas totalmente em diálogos! Voilá! Será que foi isso? Não sei, mas não estou inventando fanfic aleatória, está lá escrito: 

 

— Quando eu era mais novo, fiz um curso de roteiro e o professor me disse que os meus diálogos eram muito ruins. Aí, resolv(p. 17) 

 

E se está escrito, é claro que é verdade! Quem ousaria questionar a santidade de palavras escritas em papel ou tela? Brincadeiras à parte, os títulos das crônicas, bem diretos e curtos, muitos compostos de apenas uma palavra, já nos indicam — e podemos comprovar depois ao ler — que as histórias vão ser diretas, nada de reflexões longas e profundas, nem de filosofia, pelo contrário, os textos passam a sensação de estarmos com um controle remoto na mão, trocando os canais de uma TV e ouvindo conversas pinçadas de diversas cenas cotidianas, desde um jornal até uma conversa íntima de casal, por exemplo. Tudo bem-humorado, com sacadas humorísticas que poderiam mesmo estar em um sketch comedy.  

 

O leitor certamente se identificará em muitas ocasiões, pois todo esse universo divertido, abordado nas cenas, é o que estamos vivendo agora, com todas as contradições possíveis no nosso país (e no mundo!), intercalando os discursos que permeiam nosso dia a dia, os coaches dizendo que “você é um bosta que nasceu para trabalhar para os outros, que vai se matar para juntar uns trocados e passar o feriado na Praia Grande enquanto o patrão vai para Nova York todo mês” (p. 63); a era em que absolutamente tudo é passível de terapia e que se um paciente disser: “Doutora, eu tenho um problema [...] Eu sou feliz(p. 112) não vai nos parecer tão distópico assim... Estamos em uma era de praticidade, e tudo pode ser resolvido facilmente com terapia ou com o bom e velho consumismo: Como faz para sentir essa tal felicidade? É só escolher alguma coisa que a senhora goste aqui da loja, passar o cartão e pronto” (p. 82). 

 

Com linguagem simples, uso de gírias, referências contemporâneas, locais (paulistanos) e clichês, é assim construída a reflexão dos assuntos abordados, em que a crítica do autor se revela na evolução das falas e na chave de ouro, praticamente utilizada em todos os textos. Se desvelamos o assunto nas falas, a arquitetura do livro está bem às claras, justificadamente desvelada, quase que como um pedido de desculpas metalinguístico, no primeiro texto do livro. Novamente, não estou inventando fanfic, está lá: não se prenda às questões filosóficas, vão entediar o leitor” (p. 18). Dê a eles o que eles querem!!! 

 

Nesse aspecto, o autor aposta no uso do clichê, que ora pode funcionar muito bem, já que o intuito é essa plasticidade contemporânea do rápido, consumível, palatável, direto e agradável, sendo uma saída para temáticas já bastante desgastadas socialmente, mas que voltam à voga em seu ápice de aplicação prática, como a temática do consumismo, por exemplo. Consumismo é algo já estabelecido como nocivo, mesmo que paradoxalmente estejamos vivendo tempos de ultraconsumismo; no fundo as pessoas sabem que é insustentável, apenas negam.  Já em outras temáticas, complexas e pouco estabelecidas, o clichê pode falhar miseravelmente, a meu ver, como na questão política, já que as piadinhas que mencionam Brasília e política podem soar demasiadamente rasas e “cringes” (ainda estamos usando essa palavra?).  

   

Por outro lado, a temática religiosa percorre muitas páginas (vide os títulos de algumas crônicas: "Apocalipse, não"; "Entrevista com o Criador"; "Confissão"; "Dilúvio"; "Pena capital"; "Crucificação"; "No Paraíso"; "Justiça"; "Reza"; "Assim caiu o anjo") de forma divertida, transportando cenas dos mitos religiosos para o cenário brasileiro e para as burocracias a que todos devemos nos submeter. Lendo esse livro, me dei conta do quanto de humor há na religião, no divino, nas histórias da Bíblia, talvez porque seja a nossa última arma profana, o riso. Ou também pelo fato de que não restou absolutamente nada sem profanação neste mundo e nós nos questionamos se o papel da religião não deve também ser queimado em fogueiras ao mesmo tempo em que esperamos, secretamente, que ele não se queime, que ele seja, ao fim e ao cabo, uma grande piada de mau gosto de que pretendemos ainda rir, verdadeiramente.   

 

Claro que a temática relacionamento também não passaria despercebida, já que isso também tem sido um martírio quase santo. Estamos tentando amar em novos padrões, encaixar os papéis que nos foram dados aos papéis que queremos desfazer, estamos nos afogando em meio a tantos papéis, tudo virou pressão, até sexo virou “muita pressão”, mas “vídeo de gato é demais. De cachorro também” (p. 143). E, como se não bastasse, estamos ou não vivendo o canônico evento do Osvaldo (quem é Osvaldo? Aí vai ter de ler o livro para entender...). Eu particularmente acredito que estamos mesmo vivendo um grande Osvaldo.  E que antes do Osvaldo acabar, vamos ainda ouvir muito sertanejo universitário.

   

Conversas - Jander Minesso 
Editora: Sinete 
Ano: 2025 
Páginas: 180 
Compre aqui.
 

  

  QUE TAL UMA PRÉVIA? 


"DÚVIDAS 

— Deus?  

— Diga, meu filho.  

— Preciso de uma ajuda do Senhor. Tenho tantas dúvidas…  

— Pode falar.  

— Afinal de contas, é pecado beber?  

— Se você for evangélico, é desaconselhável.  

— E homem namorar homem e mulher, mulher? 

 — Segundo o último Papa, os católicos estão liberados.  

— E carne de porco, pode ou não pode?  

— Se você não for judeu, tudo certo.  

— Está vendo? Por que uma religião pode e a outra não?  

— Filho, eu sou do Judiciário. O Legislativo é com vocês."

  

MINESSO, Jander. Conversas. São Paulo: Sinete, 2025.



Allyne Fiorentino - Natural de Minas Gerais, residente em São Paulo, capital. Graduada em Letras e mestra em Estudos Literários pela Unesp, na linha de Teorias e Crítica da Poesia, especificamente em Simbolismo brasileiro e hispano-americano. Feminista na vida e na literatura, flerta com a Filosofia, a política, excentricidades e paradoxos. Low profile do mundo literário. Está também em Crônica do Dia. Instagram: @allyne.fiorentino.